sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ele (s)... "Passado e/ou Presente"

O mundo estava parado. Amortecido. A noite ia a meio e tudo repousava. Menos eu. Não conseguia dormir. Não conseguia dormir há vários dias. Desde que tinha ido tomar uma bebida com ele. Desde que tinha esbarrado nele, para ser sincera. Ou já seria desde antes disso? Será que eu já não tinha dormido devidamente desde que ele tinha morrido? Se tinha, não me lembrava.
Nos últimos tempos, o problema tinha passado de mau a crónico. Demorava horas a adormecer e, depois, passada cerca de uma hora, voltava a acordar, ficava deitada na quietude da noite, a olhar para o tecto branco-pérola, tentando separar os pensamentos dos sentimentos. Tentando decifrar o que estava a pensar e não a sentir, a sentir e não a pensar. Tentando perceber se o amava ou não.
A sua respiração suave ao meu lado imiscuiu-se nos meus pensamentos. Era o facto de ele estar ali que me dificultava o raciocínio. Ou respirava ou mexia-se na cama, zombando involuntariamente de mim com o seu sono imperturbado. Se ele não estivesse ali, se eu não sentisse inveja da sua capacidade de dormir, talvez não sentisse toda aquela má-vontade em relação a ele. Talvez sim, mas talvez não. Ultimamente, percorríamos um caminho tortuoso. Nada era dito, jazendo sob a superfície de cada conversa, olhar e toque. Nem tudo estava bem connosco. E isso devia-se ao facto de nenhum de nós saber qual era a sua situação junto do outro. Eu sabia que ele desconfiava dos meus sentimentos pelo outro ausente e eu tinha igual desconfiança em relação aos seus sentimentos por mim.
Para mim, as coisas tinham mudado desde que eu disse «Eu amo-te» e ele esperou uma semana para me dizer o mesmo. Eu tinha-o dito porque era o que ele precisa de ouvir na altura, mas tinha-o dito. Em primeiro lugar. E se o disse é porque o sentia. Tinha-me tornado vulnerável, tinha-me aberto e ele não conseguiu sequer pronunciar duas palavras. Duas palavras - «eu também» - bastavam para me mostrar que eu tinha alguma importância para ele. E ele não conseguiu fazê-lo. E isso fez-me duvidar de tudo o que eu pensava que ele sentia por mim.
Os meus olhos cansados fixavam-se no tecto enquanto eu estava deitada de costas, estendida, com os braços pesados, as pernas pesadas, o tronco pesado. Estava a tentar abandonar o meu corpo. A tentar afastar-me daquela realidade, a tentar flutuar para longe. Teria sido assim que ele se tinha sentido quando morreu? Teria sentido que estava a ser retirado do seu corpo, molécula a molécula? Ou teria sido rápido, não se apercebendo de que tinha partido? Ou, no instante antes de acontecer, teria ele sabido que, no momento seguinte, já não existiria?
Ele emitiu um som com a sua respiração e virou-se na cama, empurrando-me suavemente ao mexer-se. Os seus braços alcançaram-me e puxaram-me na direcção dele. Eu sustive a respiração, esperando que ele não acordasse. Poderia querer fazer amor se isso acontecesse e, naquele momento, não me ocorria nada pior. Eu não queria estar no meu corpo e muito menos que outra pessoa estivesse nele. Não queria que ele me tocasse. Não queria que ninguém me tocasse, mas, sobretudo, ele.

1 comentário:

  1. Presente...apesar de tudo, Serena...Presente!

    Um beijo. Está algures publicado, perdoa-me que não diga onde, mas, importa o que senti, como me sinto. Escrevi-o a chorar.
    Costumo vir ler-te. Em silêncio. Hoje, deixa que partilhe contigo porque gosto de estar aqui, nestes Silêncios da Tua Alma que apaziguam a minha.

    Conversando com Eugénio...

    apesar da chuva, será sempre aquela, a minha frase favorita.
    apesar de tudo, não se gastou o sentimento. não há fins. creio nos interregnos, mereço deambular nessa terra de ninguém,pois que: "pela noite adiante, com a morte na algibeira, cada homem procura um rio para dormir."como tu disseste:"Cada sonho morre às mãos doutro sonho".

    mostrei-te as mãos. entendi-te, acredita que senti, de novo, que voltava esta estúpida vontade de chorar, de fechar o livro, de cegar, de me aborrecer contigo, de guardar aquela frase favorita, mas, parei, quando me apercebi como as olhavas, dizendo delas, aquilo de que não fui capaz, e não ceguei,não me zanguei apenas as calei nas tuas para te escutar como merecias ser escutado:
    "Que tristeza tão inútil essas mãos que nem sequer são flores que se dêem: abertas são apenas abandono, fechadas são pálpebras imensas carregadas de sono.


    Dizer-te-ia este:

    39.
    Nesse Lugares,
    nesses lugares onde o ar
    perde a mão,
    os meus amigos começam a morrer.

    Falar tornou-se insuportável.
    Falar dessa luz queimada.
    Deserta.

    Que fazer desta boca,
    do olhar,
    tão perto outrora de ser música?


    De seguida, este outro:

    ONDE OS LÁBIOS

    Os lábios.
    Distante, arrefecida chama.
    nâo só os lábios, também as estrelas são distantes.
    E os bosques. E as nascentes.
    Também as nascentes são distantes.
    As nascentes onde os lábios,
    onde as estrelas bebem.
    Só o deserto é próximo, só
    o deserto.


    Saudosa, ouvir-me-ias:

    EM FLORENÇA, COM A FIAMA

    Era em Florença, num verão sem usura.
    A cidade, que nós víamos de San Miniato, desfazia-se em luz.
    Nos labirintos do Jardim Boboli,
    tu e um melro rente à relva
    cantavam um para o outro.
    Não sei qual das vozes era mais pura,
    se a do fio de água que subia no canto do melro,
    ou, mais frágil e rente ao chão, a tua.


    não vás já. espera só o tempo dum pedaço do poema que me lerias, omitindo o título que ambos sabíamos, mas que não ouso proferir:

    [...]

    Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
    Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
    era como se todas as coisas fossem minhas:
    quanto mais te dava mais tinha para te dar.
    às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
    E eu acreditava.
    Acreditava,
    porque ao teu lado
    todas as coisas eram possíveis.

    Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
    era no tempo...


    não aguento este diálogo. falas tanto, tanto, mas a palavra existia, ainda que dissesses que não. era um peixe, duma outra cor, bem sei, mas era um peixe. dizias que não, mas continuavas, como eu, a acreditar nos teus olhos, tal como eu acreditava nos meus. ainda acredito. estão vivos, vêem, ainda que depois da bonança venha a tempestade.
    pedimos muito, Eugénio, e, "não se pode estar sempre a pedir, senão, as palavras desgastam-se e há as que não podem nem devem ser desgastadas, pelo valor que têm.
    não é por se dizer que se Ama o Outro que se prova o sentimento. antes de tudo é preciso sentir e eu, Eugénio, só queria ouvir... (atrevo-me a invadir o que sentes enquanto te calas e me escutas) será que também te chegou aquela estúpida vontade de chorar? será?
    antes de tudo é preciso sentir e naquele momento so queria ouvir. foi assim, contigo?
    larga as minhas mãos, podes ir, agora que já te disse tudo.
    eu vou ficar mais um pouco.
    vai, que "passaste os dias a pôr sílabas sobre sílabas. Dorme, estás cansado." acredita! "Espanta-me que estes(meus) olhos durem ainda, que as suas pedras molhadas se tenham demorado tanto a reflectir um céu extenuado em vez de aprenderem com a chuva a morder o chão."

    vai, Amigo, que, ainda assim, aquela frase, proferida por Alguém, não menos importante que tu, não menos importante que eu, depois de tanto termos conversado, ainda é, de todas as que proferimos, minhas, tuas, e, era isto que te queria dizer, (não tivesses tu ido, antes do fim, ou será o início?...), a minha preferida.

    só falta aqui um regaço para que eu me deitasse, e, ao som da melodia das tuas pisadas sobre o areal, adormecesse. talvez que o sonho voltasse, sabes? talvez que ocupasse o lugar desta tempestade que não passa, não passa, não passa.

    Nota:
    Todos os poemas, todas as frases em negrito e itálico foram retiradas dos vários livros de Eugénio de Andrade.
    Obrigada pela paciência de me teres ouvido, Eugénio.

    Obrigada, Serena. Sinto-me bem no teu recanto, revelo-te hoje, um dos Meus Encantos..., sem dúvida!
    Um sorriso amigo aqui te deixo, como uma flor, para pores no parapeito dessa Tua Alma tão Bonita!
    Beijo,
    Cris

    http://osmeusencantos.blogs.sapo.pt

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